20090930

MoMA, Nova Iorque, EUA O homem, lívido, entrou de rompante na sala de espera. Como seria de esperar, imobilizou-se de imediato. No seu interior, não o do homem (que era bastante peculiar uma vez que possuía três rins) mas o da sala, já se encontravam algumas pessoas, um ou outro animal selvagem e várias promulgações importantes. Todos também parados, à espera. A sala, de uns cinco por cinco metros, dir-se-ia quadrada não fossem as quatro portas de canto darem-lhe um ilusório aspecto octogonal. No seu exterior imaginam-se a rodeá-la corredores amplos, iluminados a fluorescentes de 6.000 kelvins, imaculadamente mantidos por uma conceituada empresa de manutenção. O homem, ainda lívido mas agora num tom mais para o antracite-violáceo, enquanto esperava analisava o seu ângulo de visão: mesmo à sua frente esperava um belo tigre-de-bengala branco, praticamente extinto, numa ridícula posição circense; logo atrás um estafeta de uma companhia de transportes ibérica esperava, encurralado por três decretos-lei bastante mais velhos do que ele; à direita destes, já a sair do seu campo de visão, percebia parte de uma saia travada com sandália argentina de tacão alto (mas isto atribuiu a um devaneio do seu campo de visão puritano). Esperou cerca de quarenta e cinco loops de um trecho de Cantaloop dos Us3 até que, furioso por não ser atendido, resignou-se à espera. Cá fora, num dos corredores luminosos, o encarregado da sala chegava, esbaforido, a resmungar com o trânsito de gaivotas que grassava no lago. Com uma eficiência de quem tem o rigor como método e odeia Murphy, apressou-se a analisar o nível de capturas da sala de espera; considerando-o satisfatório, procedeu lesto a correr o ferrolho das quatro portas de canto. Em seguida abriu a sua pasta de pele de onde retirou as quatro novas placas de identificação das portas, onde se lia 'Sala de Jantar', e pelas quais passou, pressuroso, um paninho sintético próprio. Assim que as colocou no suporte das quatro portas de canto, todo o conteúdo da sala anteriormente designada como 'de espera' foi imediatamente processado em doses alimentares, prontamente servidas em mesas ali colocadas para o efeito. O encarregado suspirou de alívio, os digníssimos convidados acabavam de chegar.

20090923

Ponte de Lima, Portugal Mesmo antes de arrancar a contagem do tempo, quando tudo se resumia dois pedacitos e meio de vazio e a gravidade dos assuntos era igual a zero, deu-se a primeira grande manifestação de pensamento conceptual criativo. O grande nada, encarado como infrutuoso e demasiado vazio originou, num golpe de génio, a ideia do promissor tudo; e num deadline apertado. O procedimento que leva a este tipo de absurdo-aparente pode ser executado substituindo o sistema de raciocínio cerebral clássico por um mecanismo de exercício conceptual totalmente oposto como, por exemplo, a reflexão in pés. Abordar as questões por hemisférios alternativos aos usuais, pontos sensoriais com experiências totalmente diversas do comum, resulta em respostas muito díspares das neurologicamente programadas e, usualmente, mais originais. Podemos também raciocinar sem pés nem cabeça, utilizando práticas mais subtis como a reflexão de anca, o juízo inguinal, a sistematização de cotovelos, a lógica biliar ou, em casos muito particulares, o intelecto abdominal. Algumas das mais extraordinárias manifestações criativas da história foram corporizadas sem qualquer tipo de actividade neurológica. Uma das mais reveladoras conferências TED de 2008 em Monterey, na Califórnia, sob o tema "The brighter sparks of dark places", foi apresentada por um eloquente sovaco, mestre summa cum laude em Berkeley. Existem várias representações impressionistas no Musée d'Orsay da autoria de uma grotesca barba hirsuta, considerada uma das produtoras de arte mais criativas dos finais do século dezanove. O museu do Cairo destaca em sala própria um vaso funerário da dinastia Ptolomaica que se acredita conservar os restos mumificados do único joelho que governou o antigo Egipto. Estas mesmas linhas foram escritas por uma glote inflamada, sem qualquer intervenção intelectual.

20090920

Ordino, Principado de Andorra As catenárias estalavam como látegos nervosos nos costados da composição mantendo-a firme na bitola de via larga. O condutor, à pendura na traseira, soltava impropérios aos transeuntes sob o olhar aterrorizado de dois fiscais que viajavam na última carruagem. As portas abriam e fechavam, ritmadas, afatiando o miolo de utentes que se lançava para o exterior. Os altifalantes, mudos como eunucos, entraram em manutenção. No interior do veículo, calmamente sentado à janela com as costas muito direitas, um jovem de óculos escuros lia, em Braille, uma história rocambolesca - "As catenárias estalavam como látegos nervosos nos costados da composição mantendo-a firme na bitola de via larga. O condutor, à pendura na traseira, soltava impropérios aos transeuntes sob o olhar aterrorizado de dois fiscais que viajavam na última carruagem. As portas abriam e fechavam, ritmadas, afatiando o miolo de utentes que se lançava para o exterior. Os altifalantes, mudos como eunucos, entraram em manutenção."

20090915

Milford Sound, Nova Zelândia Seja Bravo de Esmolfe, Reineta ou qualquer outra variedade menos comum, a maçã orgulha-se de ser encarada com a maior gravidade. O morango leviano ou o libertino damasco não são comparáveis a este fruto de trabalho sério. Quem mais, de modo tão brilhante e apaixonado, mostrou que uma queda esconde uma atracção irrefreável? Que os corpos se atraem? Que o amor choca? Um salto no vazio traz o coração à boca e faz amar a vida como nunca. O suicida arrepende-se e o radical suspira de alívio. Subtilmente e cheio de paixão, o próprio planeta cai. É por tudo isto que as maçãs apanhadas do chão são as mais saborosas.

20090911

Península de Otago, Nova Zelândia (foto Rute Lucas) A diminuta varanda triangular não era um local particularmente agradável. Baixa, excrescente de uma sobreloja, roçava o caótico da vida pública. Resignada a uma sombra de vizinhanças altivas, era depósito de beatas e aerossóis peganhentos. Em vão se procurava uma nesga de vista. Todo e qualquer transeunte juraria a pés juntos não existir ali mais do que uma fenda na fachada lisa, tal era a insignificância da sua dimensão. Dir-se-ia uma cilada retorcida de um arquitecto maldoso. No seu parapeito carcomido nunca se debruçou uma begónia ou sardinheira. Mesmo a lâmpada amarelenta, ignorada pelas falenas, fundiu-se. Local solitário e indiferente, esta varanda irreal era o espaço mais cheio de todo o piso vazio. Magnífico altar à relatividade das coisas, testemunhava em silêncio as mais díspares exalações humanas. Transpor a caixilharia anodizada e assomar-se ao seu peitoril era a mais libertária das emoções, tão esmagadas que estavam entre a loja e o primeiro piso. A exposição ao mundo livre, gerava arrepios de possibilidades e angústias de lucidez. A sós, era palco de solilóquios arrebatadores, juras e longas inspirações de exaustão. Menos sós eram as comunhões de ideais, as tramas e os risos. Vagas de emoções batiam-se naquela escarpa. Abnegada e aberta, a imensa varanda insuflava, em correntes, todo o ar que ali se respirava. Indiferentes a tudo, os cabelos esvoaçavam.

20090908

Glaciar Franz Josef, Nova Zelândia Um grupo de porteiros de hotel reunia-se em segredo, todas as segundas-feiras à noite, num conhecido barracão abandonado dos arredores da cidade. Sendo um dos não-lugares mais em voga do momento, era comum encontrar ali equipas de casting em sessões fotográficas, velhos párias embrulhados em cartão e mesmo alguns membros saudosos de grupos terroristas desactivados a ditarem as suas memórias. Ora sendo a segunda-feira o dia da semana em que, por norma, os restaurantes fecham e os museus encerram, o conhecido barracão abandonado estava, normalmente, à pinha, o que deixava sempre o grupo de porteiros de hotel que se reunia em segredo, bastante desconfortável. Não que alguém lhes dirigisse a palavra ou pousasse sequer um olhar mais inquisidor sobre os seus conluios. A situação confrangedora ocorria quando alguém se aproximava das instalações; de imediato um dos porteiros saía disparado e abria o empenado portão com um sorriso de boa noite. Após tão lamentável reacção era normal e esperado por todos que, ao cair em si, o fraco membro cometesse de imediato suicídio, colocando o portão entreaberto e deixando-se atingir corajosamente por uma violenta corrente de ar. O mais constrangedor foi que o desenvolvimento desta situação se tornou de tal modo repetitivo que o único resultado prático destas reuniões foi o de tornar o portão mais perro, pelo acumular de corpos na entrada, e reduzir o grupo secreto de porteiros de hotel a um velho reformado do Winter Palace, cego e surdo, que continuava a ditar os estatutos da associação.