20100304

Sydney, Austrália Em plena savana de Masai Mara, uma curva apertada do rio Talek agarra um bosque de acácias. Na margem, uma tenda assiste à chegada da noite africana. Fechado no interior deste enclave um homem tenta, em vão, adormecer. Os dois metros quadrados do seu território não são fáceis de defender. Impotente, ele observa as sombras que entram e lentamente afundam o seu corpo em escuridão. Um cheiro hostil tinha já invadido o espaço e ressonava a um canto. As paredes mexem muito devagar, dando um ar irreal à sua insónia. Deitado de costas ele sente os toques insistentes da lona, enquanto fixa a estrutura de alumínio, mantendo-a presa. Por instantes tenta perceber como foi capaz de deixar o conforto de uma vida picada a ponto para se deitar a perder nesta viagem de fanfarronice. - Mulheres,... e aqueles palhaços da seguradora - rosnou, irritado. O som da sua voz soou-lhe estranho, naquele silêncio, e espantou as suas divagações. Estava de novo alerta; reparou que se mantinha vestido e calçado como se fosse a algum lado. Isso, e a impossibilidade de se levantar, com aquele pé direito, dava-lhe um certo ar de defunto. A pouco e pouco os ouvidos começaram a abrir-se aos sons que acordam lá fora, deixando-o com a desconfortável sensação de estar isolado mas não sozinho. Cada guincho, cada resvalo, cada resfolgar longínquo, trazia consigo algo estranho, inquietante. A memória auditiva é um poderoso tranquilizante; um estouro de um escape livre, um ranger do soalho, um grito de mulher histérica, tudo pode ser digerido com um sorriso, conhecendo-lhe a causa; agora isto... De súbito, um estalar seco de ramos quebrados com violência trazem uma respiração forte e possante ao lado de fora da tenda. Coberto por um formigueiro, o homem encolhe, pára de respirar e sente o impacto de 6735 folhas secas a serem esmagadas por 938 pequenos galhos secundários que se estilhaçam sobre si próprios, cravando farpas num solo já vermelho. De súbito, o silêncio. Quase sem ar, o homem arrisca uma golfada lenta; lá fora, um exalar gutural seguido de dois passos secos fá-lo arrepender-se. O imponente colosso, pois só assim o pode ser, rodeia o perímetro em passadas que marcam o terreno. Pelo baque deve ter uns oito cepos por membros, atirando-os em movimentos lentos e descompassados. Parece não ter pressa. Parece que sabe o poder que exerce sobre aquele homem envolto em mortalha. Entretanto o homem roda sobre si mesmo, expondo umas costas ensopadas em suor e olha fixamente para o fecho de abertura da tenda, agora à sua frente. Na escuridão total aquele fecho tem um brilho tentador, convidando-o a abrir os seus dentes afiados. Mas o homem não se mexe. Analisa o adversário, que parece dirigir-se agora para a borda d'água. Um a um os oito troncos sulcam ruidosamente o leito do rio - um mero fio de nascente face àquele leviatão. Assim obstruído, o caudal transborda e aproxima-se perigosamente da tenda. O homem quase arrisca deslizar para mais perto da entrada quando um novo som redesenha-lhe o monstro; com os membros ainda a revolver a água, o topo de uma acácia é quebrado em dois numa chicotada. "Pelo menos três corpos de altura,...e uns vinte tentáculos.", pensou. Da ramagem arrancada, vinham sons triturados de um ruminar pastoso. Já invadido pela água barrenta do rio, o homem experimenta deixar passar o calor de uma ligeira saudade das tardes tranquilas a preparar processos de fraude, em frente ao enorme relógio de parede do escritório, mas curiosamente a sensação não foi apaziguadora; era como se parte de si estivesse já a ser devorada pelo ser sem forma que se expandia lá fora, eriçando os seus instintos mais adormecidos. Chegou-se ainda mais perto do fecho dentado, sentindo-o roçar-lhe a testa. O odor à pele velha e húmida daquele gigante disforme, subia agora a margem na sua direcção. Antecipando o confronto, o homem deixa-se tomar um pouco mais pela sua simetria e arqueia ligeiramente a espinha dorsal, juntando as omoplatas. Já não é só um homem. É o fim de uma hibernação. A tenda começa a tomar uma forma humana. No exterior, a encarnação mitológica avança pesadamente pela zona pantanosa que agora envolve a tenda. Bruscamente, muda de direcção, contornando-a. O homem, impossibilitado de rodar dentro do seu casulo, apercebe-se que o monstro se estendeu e que tem agora uma muralha de carne viva a envolvê-lo. Um bafo quente e húmido ensopa o ar de miasmas e acelera o seu metabolismo. As mãos cravam-se no fecho reluzente, aguardando a ordem que os dentes não descravam da língua muda. Tudo se cala, na noite. Um frenesim contido vibra no couro da besta. É então que um formidável bramido rasga a savana e estala a estrutura da tenda. De imediato duas mãos esventram o fecho metálico e um corpo arqueado lança-se em pleno ar num grito muito pouco humano. Estremunhado, o velho elefante acorda, olhando em redor. A vinte passos, a toda a volta, continuava ali o fosso escuro. Depois, as grades em forma de lança africana. Mais além, depois do passeio bordado a relva artificial, estava o muro alto e, ao longe, os últimos andares de alguns prédios de escritórios. Tirando o novo casal de hienas, em quarentena, todo o jardim zoológico dormia. O paquiderme passou a tromba pelas têmporas enxugando alguns suores nocturnos. Não tinha memória de um pesadelo assim. E a sua memória era prodigiosa, diziam. Se bem que, sendo nascido e criado em cativeiro, a memória era coisa que não tinha muita utilidade. Tinha de admitir que podia muito bem estar a precisar de ajuda profissional. Fumou um cigarro, enquanto esticava as pernas pelo pátio, prometendo a si mesmo marcar uma consulta no dia seguinte, à primeira hora.

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