20110214

Bokor Palace, Phnom Bokor, Cambodja Mal deu por falta dos óculos, a dona levou as mãos à cabeça, onde eles costumavam poisar. Os dedos andaram às cegas pelos rolos do cabelo, desalinhando uns caracóis que mais pareciam lapas, de tão agarrados ao couro cabeludo. Em vão. Bateu com as mãos no peito, nos quadris, mas de óculos, nicles. Virou a casa de cangalhas. Foi de gatas até ao contador de salão, ansiosa por novidades, e ele mudo como um criado. A senhora já não via nada à frente. A casa, sem óculos, parecia mais nova. Quando se procura um pertence perdido, naquela fase em que já esgotamos todos os cenários e retrocedemos todos os passos, geralmente morde-se o lábio e coça-se a nuca, antes de partir para os recantos que há anos não visitávamos. Como a viagem é tomada à pressa, não levamos um agasalho nem a merenda, e o ar desalinhado que a angústia nos traz, faz com que os outros atravessem para o lado de lá, sem se aperceberem da firmeza de carácter que nos guia. E as surpresas? E aquelas coisas que encontramos, sem querer, e que nos tentam desviar do caminho? Quando, por exemplo, procuramos uma caneta dourada - e gravada, com dedicatória sentida -, de coração apertado à espera do pior, e nos aparece, vinda não sabemos de onde, uma forma de pudim que já não era usada há dois invernos? Pomo-nos logo a antecipar o prazer de um Abade de Priscos ao jantar, e votamos a pena perdida ao mais cruel esquecimento. A desfocada doméstica assim era posta à prova. Ao dobrar a prateleira mais baixa do camiseiro dos fundos, a velha rela do seu rebento, agora militar, atingiu-a em cheio no coração. A lágrima que caiu no vazio, lembrou-lhe os óculos perdidos. De costados no taco, arrastou-se para debaixo da cama, onde uma nota de cem escudos lhe trouxe à memória o mês sem reforma. Quando se lançou pelo fundo falso da clarabóia, deixamos de a ver. E de poder contar seja o que for. Afundado no sofá da sala, o gato não aguentou mais e entreabriu os olhos. Não vendo a patroa levantou-se em arco, esticando as articulações, e abriu as goelas desmesuradamente. Por de baixo dele, mornos e cheios de pelo, escondiam-se os óculos da dona. Fica por explicar se aquilo foi um longo bocejo de abandono ou uma surda gargalhada de mafarrico.

1 comentário:

delfim disse...

Por vezes, encontra-se um objecto esquecido de um ente perdido. É o gelo.E se não existe o conforto de um agasalho e da merenda...