20110429

Bayon, Angkor, Cambodja Eles dizem que o tempo vai mudar e eles raramente se enganam. O tempo muda, inexoravelmente, e nós, que guardamos um resto de despeito para estas ocasiões, soltamos uns remoques que se colocam entre a fina ironia e a asneira da grossa. Mas eles é que a sabem toda. Foram eles que fizeram este lindo serviço de colocar as coisas no estado em que elas estão. O que nos vale, são as nossas vitórias e as nossas alegrias, quando eles são massacrados. O que lhes vale, a eles, é serem vagos, pois logo que ganham forma e lhes conhecemos o conteúdo (ou a ausência de dele), tornam-se um de nós. Tornam-se contra eles. Somos assim como a rã de Kyoto e a rã de Osaka que, tentando ver mais além, se apoiam uma na outra, em pé nas patas traseiras, ficando com os olhos voltados para trás, a julgar que o futuro é algo maçadoramente igual ao caminho já percorrido.

20110426

Amman, Jordânia Atrás de um homem enorme caminhava, a custo, uma mulher sacrificada. Pareciam estranhos, um com o outro e, no entanto, todos os conheciam como casal. Mudos, cruzaram o cotovelo da viela e deram lugar a um herói de resistência - a viver há 98 anos – super ocupado a manter pelas costas a capa onde esvoaçavam duas mangas inúteis. Convém esclarecer que estas duas espanavam como doidas, não pela velocidade do passo do senhor, que ia praticamente parado, deixando-se levar na procissão lenta e glaciar dos paralelos da calçada, mas sim pela nortada, que aqui cai com o entardecer. De um ponto de vista elevado, o homem pareceu sumir-se para debaixo da terra, de onde logo saíram – que bela alegoria, dirão alguns – duas crianças da rua a afagar um gato caramelo. Com este excesso de atenção ao detalhe, quase perdíamos a passagem de uma criatura volumosa que envergava a mesma bata com que trabalhava para uma senhora. Abraçava uma chusma de vestidos, pela cintura, sem saber qual usar, numa ocasião especial. Aos poucos a ruela aquietou-se e, tirando um par aos beijos que agora-se-via-agora-não, a viela entroncada em cotovelo espreguiçou-se, parecendo, por momentos, uma rua direita. Um a um, Deus acendeu os lampiões da rua. Deus tem a vista cansada e a luz põe-lhe tudo a nu, como era dantes.

20110417

Phnom Penh, Cambodja Há cerca de 14 tipos de caras, numa multidão comum. Depois temos os formatos da cabeça, que são à volta de 8, homologados, e a distribuição de apetrechos como olhos, sinais e remoinhos capilares. Estes últimos podem atingir uma variedade de configurações tão notável que muitas vezes escapam ao vulgar transeunte. Ora, foi exactamente isso que acabou de acontecer com um par de orelhas. Aproveitando uns ramos de salgueiro mal aparados, invasores da via pública, soltaram-se do seu legítimo dono e, sem que ele ouvisse o que quer que fosse, deixaram-se pender por um galho espevitado. Há até quem tenha visto caras inteiras lançarem-se na sarjeta, envergonhadas com o descaramento a que são expostas. Mas, convenhamos, quem é que nunca correu atrás de uma língua estrangeira, imbuído de um espírito puramente altruísta, ansiando tão somente devolvê-la à boca vazia? Os dentes também se escapam, mas dão muito nas vistas. Têm o coração mole e hesitam muito, abanando por todos os lados antes de arrancarem. Tudo isto pode ajudar a perceber porque é que muitas vezes não reconhecemos certas e determinadas pessoas. O que não é o mesmo que pessoas certas e determinadas.

20110413

Donostia, País Basco Acomodados no interior da composição, os passageiros entreolham-se à vez, a medo. Lá fora, a correnteza forte vai arrastando os olhares à deriva. Graças a Deus pelas janelas. Um plano único, belo e irrepetível. Uma árvore seca, corre para as pernas de um cão distante (os espectadores suspiram de alívio). Um furgão lento ginga-se, peludo, exibindo-se para o grande ecrã. Logo após varrer um jardim, o chão suado deita-se num leito seco. O público, embevecido, engole em seco uma lágrima. Inesperadamente, o túnel abocanha o metro, como de costume. O exterior apaga-se, e os vidros duplos, agentes maldosos, reflectem as imagens de todos, como um pontapé no estômago. Por brevíssimos instantes, olham-se nos olhos. Que grupo sombrio, que gente estranha, pensam. E desatam a verificar o seu próprio reflexo no visor do telemóvel, ansiando um toque ou, se calhar, apenas uma cara amiga.